RESISTÊNCIA SISTÊMICA



Se, para alguém, a objetividade dos fatos vale menos que uma interpretação subjetiva da realidade, então temos um problema de maturidade que é relativa a uma culpa negada ou à fuga da responsabilidade pessoal.

O desenvolvimento pessoal requer transgressões de lealdades antigas. Quem nasce e se mantém totalmente leal ao seu sistema familiar, também se mantém leal a tudo que, nesse sistema, emperra o seu desenvolvimento.

Para se desenvolver a pessoa precisa fortalecer a capacidade de se responsabilizar pelo próprio destino e fazer diferente da tradição. É uma transgressão responsável onde a mera oposição não é suficiente. Para ilustrar, se fala de “força de resistência” contra um sistema do qual se depende, ou seja, embarcado no navio, torce para ele afundar. Isso é sandice. É infantilidade. É irresponsabilidade.

É impossível negar as origens e, no nível prático, é preciso responsabilidade para arcar sobre as escolhas e os caminhos (e descaminhos) derivados delas, sem imputar aos outros o resultado disso. Tudo é parte do movimento pessoal cuja responsabilidade é primordialmente individual.

Por exemplo, as pessoas que empregam outras, com frequência relatam que há empregados indolentes, soberbos que não gostam de trabalhar, fiscais de obras prontas, encrenqueiros, que resumem o motivo de estarem ali no salário. do qual também reclamam. Quando confrontados, dizem que têm poucos recursos, que são vítimas de um sistema perverso, dando a entender que seriam bons caso tivessem recebido mais recursos e gratificação. Eles são fracos.

Bert Hellinger escreveu em Constelações Familiares: O Reconhecimento das ordens do amor, que os pais que tudo permitem aos filhos os prejudicam porque eles não conseguem desenvolver a força interior: passam o tempo a se vitimizar de que algo não deu certo por causa dos pais, agem como adolescentes que dependem dos pais para se tornarem viáveis. Não se desvencilharam dos pais e carregam para os outros - especialmente os líderes - as expectativas frustradas que tem dos pais.

As doenças produzidas no seio da família surgem não porque as pessoas sejam más, mas porque ali atuam destinos implicados em todos, por causa do vínculo familiar. Os pais tiveram os seus próprios pais e trouxeram destinos que estes já tinham traziam dos avós. Se algo grave aconteceu em uma família, por exemplo, há a necessidade de compensação disso ao longo das gerações seguintes. Conforme escreveu Hellinger, alguém sempre carrega a forte chance de repetir o destino dos pais.

As forças de tais destinos são poderosas e estão em ação o tempo todo. A tarefa dos filhos é se tornarem capazes de intervir, se responsabilizarem e fazerem realmente alguma coisa. Isso é muito distante de auto vitimização.

Hellinger escreveu que é fácil ser o terapeuta de frases bonitas. Eu diria que é muito mais fácil se fiar nas percepções subjetivas do paciente que não deseja crescer e nem se responsabilizar, passando-lhe as mãos na cabeça, ignorando quão difícil é, ainda segundo Hellinger, conviver com esse cara. Mais difícil ainda é fazê-lo prestar atenção ao destino que carrega, ajudando-o a se responsabilizar para alterar o seu destino no que for possível.

A respeito de mudança de destino, Hellinger usou dois termos: “aceitar” e “tomar”. Para o autor, “aceitar” é benevolente, é um gesto passivo. “Tomar”, no entanto, para o autor, significa aceitar que aquilo é daquele jeito.

Ao “tomar” o destino, a pessoa humildemente concorda que os pais dela são daquele jeito e aceita que, por ser originada deles, compartilha da mesma natureza. Isso vale tanto para as canalhices dos pais, como para eventual nobreza deles, visto que a idealização exclui o essencial deles. Helinger afirmou que essa atitute é profundamente conciliatória, porque permite a pessoa, finalmente, descansar, sem julgar.

As pessoas são o que são e provêm de onde provêm. Essa é a linha-de-base a partir da qual qualquer um se auto responsabiliza, assume a culpa e se torna capaz de intervir.

Hellinger disse que aqueles que querem permanecer inocentes (frente aos pais) também permanecem fracos pois não tomaram a própria vida para si, carregando os reveses que causarão ainda mais sofrimento para os outros, especialmente para a descendência.

Não se responsabilizar é querer permanecer inocente e, conforme diz um amigo, viver no mundo de Lalaland, prolongando a experiência de uma infância subjetiva esticada. Tais pessoas levam bordoadas de todos os lados e dizem que são vítimas, quando, na real são vítimas de si mesmas.

Hellinger afirmou que cada fase da vida tem as suas próprias leis e a própria satisfação e que a maioria das pessoas ignora o fato de a satisfação estar limitada e ser, potencialmente, limitante. Por exemplo, a criança que, no ventre da mãe é feliz; mas, apesar disso, ela precisa sair de lá depois de nove meses. Se tiver sorte, vai se reencontrar com a mãe nos braços dela, será alimentada, cuidada e amada por ela. Passado mais tempo, aquilo já não é suficiente e ela vai querer andar e se distanciar. Ainda mais tarde, completa Hellinger, a criança se transformará em um adolescente impaciente e ansioso por liberdade, e coisas que ficarão monótonas depois de certo tempo até que se inicie uma nova fase: a da profissão, o do dever, a do casamento, a de ter filhos, etc.

A felicidade, para Hellinger, tem muitas camadas, não podendo ser resumida em um estado de euforia. Ela tem mais a ver com estar plenamente integrado à fase de desenvolvimento daquele momento e ser alguém de verdade: uma criança de verdade, um jovem de verdade, um homem de verdade, um mulher de verdade, um pai de verdade, uma mãe de verdade e ser, de verdade, bem-sucedido na profissão, e etc.. Isto requer também conseguir se retirar na hora certa, dando lugar àqueles que vêm depois, morrendo para esses momentos para, lá no fim, conseguir encarar a morte.

Observamos que, se nos agarrarmos à ideia de felicidade, tal como a víamos na juventude, vamos querer prolongar tudo sem percebermos a perda que isso gera. O que dizer de uma pessoa de 50 anos de idade que ainda se comporta como adolescente, que não tem família e nem ideia do que isso significa? Ela fica solitária e nota que perdeu algo importante - que foi a transição certa no momento certo.

Hellinger afirmou que todos são chamados a servir à sociedade. Quando alguém nasce, o mundo já estava acontecendo, sendo que o nascimento de alguém não é um advento cósmico da encarnação do “ser supremo do Universo”.

A ideia de que a sociedade deveria estar preparada para servir o recém-chegado é uma distorção infantilóide da mente de pais, imbuídos do interesse de compensar as próprias fantasias infantis frustradas, nos filhos. Tais pais ficam embasbacados com os filhos e acabam tornando-os em adultos pouco humildes que sentem que deveriam estar sendo servidos, ao invés de servirem.

O ciclo benigno é ser capaz de contribuir para ser digno de poder receber. Senão, tudo que é recebido se converte em dívida.

A missão individual de servir à sociedade sofre os limites das circunstâncias, doença, constituição física, país e povo, sendo algo que se desenvolve no seio do que foi oferecido. Como em tudo, os recursos são escassos e isso requer aceitar as limitações (tomar para si), se auto responsabilizar, ganhar força e realizar. Quem tem vontade, o que já tem é suficiente para realizar. Quem não tem vontade, todos os recursos sempre serão insuficientes.

Finalmente, Hellinger afirmou que é ilusório acreditar que todos os sonhos se realizarão. Isso é falso por causa do que a pessoa herdou do sistema (familiar, social, organizacional, cultural) e por causa das próprias ações (individual).

Uma pessoa pode estar sistemicamente direcionada para o fracasso e ela precisa olhar para isso como do jeito que isso é, a fim de se responsabilizar e então, estabelecer um caminho diferente sem preguiça, sem auto vitimização e compactuando com a força universal que livrou os ancestrais de abismos. Isto é ser resistência. Pelo menos, é a verdadeira resistência sistêmica.

Diferente de ser algo mágico, a constelação ajuda a pessoa olhar para o destino que ela carrega e que provém do seu sistema. Deve acolhê-lo e se responsabilizar. Depois, modifica-lo até onde as limitações permitirem. As constelações abrem a compreensão sistêmica dos passos que precisam ser dados.



Autor do artigo:  
Miguel Mello. Psicólogo. Doutor em Ciências Médicas. Constelador. Psicanalista. Professor. Pesquisador. Escritor
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